quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Pichação

Nasce devagarinho (um risquinho...), o olho no professor (uma letra...), o rosto a ferver (uma palavra...), a deliciosa excitação do proibido (um insulto...), da clandestinidade (um desabafo para o companheiro do lado, desafiando-o a partilhar a aventura...). É uma tentação. Aquela mesa tão lisa, tão limpa, tão imaculada; e aquela aula tão chata, aquela matéria tão “seca”, ditada tão monocordicamente... O cenário convida, as circunstâncias justificam – porque não?

Cresce. Salta das mesas da escola para as portas dos estabelecimentos comerciais, para muros e paredes que, de tão vazios, parecem estar mesmo a pedi-las. Invade ruas, terras, países, com um arrojo impune que se transforma em vírus sem antídoto nos grandes centros, onde as pessoas são massas e o vazio é grande demais para ficar contido no peito.

Morre com a idade – essa “coisa” que vem de lado nenhum para domesticar todas as vozes. Mas lá no fundo (alguns mais fundo do que outros) algo sobrevive – linhas soltas, traços confusos que, em qualquer instante de inadvertência, podem saltar para cá e para fora, indomáveis outra vez.

Há palavras que ganham corpo em lugares escuros, sombrios e malcheirosos. Palavras libertas de todos os constrangimentos em lugares onde a livre expressão se furta por completo a qualquer tipo de controle. Palavras libertas até mesmo de sentido. Confusas. Gritos silenciosos feitos matéria. Subversão. Transgressão. Insulto. Lixo visual. Inocência. Palavras apenas. Necessárias? Haverão palavras necessárias? Serão “apenas palavras”?

Não ostentam bandeiras nem pretensões de mudar a sociedade. Mas, à sua maneira, quem sabe, não contribuem para tornar essa sociedade mais transparente? Porque nós somos esses muros pintados, essas mesas escritas, essas portas cravadas a canivete, esses banheiros públicos sujos de tinta e de todos. Sim, nós somos esses nomes, esses rabiscos, esses insultos, esses erros ortográficos, esses alguém “Love” alguém...

“A cultura não salva ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: o homem projeta-se nela; só esse espelho crítico lhe devolve a própria imagem.” (J. P. Sartre)

E eis que o espelho nos devolve a decadente imagem de uma sociedade com vontade de falar e sem nada para dizer. De um espaço onde já ninguém se entende porque falam/escrevem ao mesmo tempo, atabalhoadamente, uns em cima dos outros, sem respeito por uma individualidade que é, afinal, uma noção cada vez mais difusa... Será a anti-cultura uma solução neste mundo ambíguo e de idéias diluídas onde as pessoas já não conseguem ter sonhos?

Reais, presentes, difíceis de ignorar, situados algures na tênue fronteira entre o racional e o irracional, estes escritos são a mais pública, banal e indomesticável das formas de expressão. Um culto, quase, adorado na sombra por milhões de adeptos que, possivelmente, teriam muita dificuldade em explicar o porquê dessas palavras gratuitamente lançadas onde ninguém as quer.

Não sei explicar o fenômeno. Talvez seja um modo de saciar a eterna fome da afirmação e do dizer. Talvez não seja nada. São “só” palavras com prazo de validade. Duram o tempo que durar uma porta, o espaço entre uma pintura e outra, nunca se sabe. Vivem entre o eminente perigo do desaparecimento e o da ilegibilidade resultante de um acumular infinito de palavras, desenhos, riscos, moralidade barata, filosofia de cordel... Mas há mais espaço. Há sempre um outro espaço.


(texto adaptado, de Catarina Moura.)
Retirado do livro: O Graffiti na cidade de São Paulo e sua vertente no Brasil, de Sérgio Poato – 2006.